Afastar-se para perto: ficção-vida é uma espécie de meteoro inquieto que ronda incansável por esta galáxia da linguagem em uma aventura arriscada de experimentação dos limites: furar fronteiras e abrir litorais. Marcelo Ariel, nosso cometa negro, imagem que ele evoca no livro, nos oferece com seus escritos uma errância com método. Este livro nos mostra a radicalidade do que é ser um leitor. Ler como um convite a sideração, ler para acionar o estranho que constitui a todos, ler como um empuxo ao sonho já que o texto pulsa sempre em acordes dissonantes. São muitos os mapas de viagem dos inúmeros textos e autores que vêm conversar com ele e, em muitos momentos, lembrei de um poema de Rainer Maria Rilke, O leitor. Mais precisamente do fragmento: “... crianças que brincam sozinhas e súbito descobrem algo a esmo; mas o rosto, refeito em suas linhas, nunca mais será o mesmo.” Marcelo expande um pensamento sobre o que é o corpo da escrita. Ele pensa o corpo dentro de uma lógica de descentramento do mundo e ativa com precisão os espaços do periférico, nos mostrando que é nas margens que deveríamos pensar o centro, dissolvendo assim as lógicas do poder que instituem com violência as hierarquias de valor. Em determinado momento escreve que “no lugar do centro poderíamos cultivar o vazio pragmático das insônias.” Assim, insones, podemos perceber um pouco mais os contornos da noite. Que a noite nos acorde, enquanto ainda é tempo, pois é impossível dormir com estes desequilíbrios do mundo. Este livro nos joga na cara, com força e delicadeza, o obscuro que nos habita e que tantas vezes recusamos ver. Como escreveu Gilles Deleuze, “sei que tenho um corpo porque há o obscuro em mim”. O fato do livro se abrir com uma dedicatória à criança que tantas vezes guardamos sufocada dentro de nós já indica a topologia moebiana do título que escolheu para estes escritos. Afastar-se para perto dissolve um pensamento raso sobre o que entendemos por espaço. Neste ponto, evocar Milton Santos é fundamental. Ele lembra que não podemos pensar o conceito de espaço sem pensarmos nos sistemas de ações, portanto, faz entrar em cena os atos que redesenham o contorno do mundo. Esta é a geografia inquieta que ainda vamos ter que acionar nas cartografias do mundo.
Temos nas mãos um livro que respira ofegante pois os textos nos levam para muitos lugares em uma associação livre que lembra muito o fluxo onírico. Portanto, precisamos da delicadeza de nos aproximar com calma e auscultar o coração utópico que pulsa ali dentro. Utopia como um movimento de contra fluxo ao senso comum, utopia como um direito a imaginar outras configurações de mundo, utopia como um ainda não, como propõe Ernst Bloch em seu Princípio Esperança. Marcelo Ariel aciona palavras nômades no mundo de linguagem que não para de produzir refugiados. Está atento aos que foram jogados para fora. Mostra-nos que as invenções potentes da linguagem vêm sempre deste fora. O retorno do recalcado sempre ressurge inquieto nas brechas da linguagem em uma enxurrada enigmática, confusa, áspera impondo ao mundo os novos significantes que tem a potência de reinstaurar o inédito. Aproximo muito este livro de um poema de John Berger, Palavras Migrantes: os sotaques da língua materna enterrados à espera que algum andarilho venha recuperá-la em uma canção de ninar. Nascer novamente, portanto, no encontro com as músicas perdidas e enterradas em algum buraco. E como estamos falando de nascimento é importante lembrar que este livro é uma continuidade de Nascer é um incêndio ao contrário, que Ariel publicou em 2020.
Fico imaginando o livro de Ariel sendo lançado no círculo de areia do trabalho da artista libanesa Mona Hatoum Self erasing drawing, implodindo as engrenagens do esquecimento. Mona Hatoum concebe um trabalho evidenciando a voracidade dos apagamentos da história. Ela constrói um mecanismo com um pequeno motor e duas hastes, como ponteiros de um relógio, em uma caixa redonda repleta de areia. Uma das hastes vem fazendo inscrições na areia e a outra vem logo depois apagando os traços recém feitos. Diante deste trabalho sempre me pergunto como parar esta máquina alimentada pelo inconsciente colonial e pelo racismo que contamina a alma de nosso país e que Ariel nomeia em determinado momento como “a flor do vazio”.
De certa forma este é um livro-memorial, pois nas ficções que nos apresenta lemos páginas e páginas da história do Brasil. Ariel é um poeta intenso, múltiplo, inquieto, que tem sede, muita sede. Como evoca na abertura do livro A vida de Clarice Lispector: novela breve (2022), “agora sou tudo, tudo o que explode, tudo o que racha, tudo o que fende e sinto um novo tipo de sede(...)” Se por um lado a sede é atávica, incontornável e urgente, também evidencia a sua dimensão de enigma sobre a voz que precisamos acionar para saciar nossa sede. Aqui Ariel convoca seus interlocutores nas tantas leituras que transita já que o enigma é uma espécie de borda do diálogo em uma citação que faz de seu amigo Gilberto Mendes, grande compositor brasileiro, pioneiro na música aleatória e concreta no Brasil, autor de pérolas musicais como Ulysses em Copacabana surfando com James Joyce e Dorothy Lamour. Esta é uma melodia no tom de Afastar-se para perto. Quais as vozes que irão saciar nossa sede? Marcelo propõe algumas, e saímos da leitura com centenas de anotações se quisermos continuar dissecando o enigma de nossa sede. Em vários momentos lembrei um poema de Duan Kissonde intitulado Crioléu que resume bem o que estou tentando esboçar neste breve posfácio. Anoto aqui um fragmento: “híbridas palavras/jecas/plano de voo de diásporas dispersas/pela página em branco/negras da cor da terra/móbiles sem paradeiro/Quem são vocês e que vozes são estas?...”
Que vozes são estas? Tive a chance de um encontro com o Marcelo Ariel em um final de tarde de domingo em São Paulo, ocasião em que ele comentou comigo do projeto deste livro. Era a primeira vez que nos encontrávamos pessoalmente e de imediato pude perceber a porosidade utópica do seu pensamento e a aposta que faz no princípio, que evoca em seu livro O mundo ganha contornos de sonho quando abrimos mão de nosso contorno. E subitamente estávamos ali, juntos, diante de indígenas guaranis com suas canções em protesto contra o marco temporal. Nossa conversa, portanto, se iniciou em uma escuta destas outras vozes. Foi comovente entrarmos depois em uma dança circular, um circare vivo reunindo todos que ali estavam, e assim o corpo pode se fazer discurso. Um devir indígena, um devir-Exu como Ariel evoca em seu livro A dança de dez mil anos de Thelonious Monk, que contorna pelo alto.
Marcelo Ariel aciona um pensamento contra identidades mostrando as armadilhas da lógica dos espelhos: eu/eu. Lembra-nos que “a identidade é como uma película ficcional. A questão é se perdemos a alteridade de vista, perdemos o mundo.” Assim, em vários momentos da leitura nos perguntamos: como então acionar este futuro que ainda não fomos capazes de inventar, pois reiteramos sempre as compulsões de repetições que voltam ao mesmo lugar. Como anotou Franz Kafka em seus diários, em fevereiro de 1911 em uma pequena narrativa, O mundo citadino, “Por favor, pai, deixe o futuro continuar dormindo como ele merece. Pois se o acordamos antes do tempo, o que conseguimos é um presente sonolento. ”
Afastar-se para perto anuncia um tempo do despertar, acordar para continuar sonhando. Contudo, como não se pode atravessar um deserto sozinho, convoca as leitoras e os leitores a se juntarem nesta travessia. A terceira parte deste livro, A prática do poema como um arco entre a terra e o céu propõe alguns mapas para esta travessia: “o nosso nascimento foi um poema do mundo e podemos continuar esse poema devolvendo ao mundo suas próprias palavras...” Estamos diante de um livro que aciona muitos furos no futuro.
Edson Luiz André de Sousa