Prefácio A actividade de troca tem sido desde sempre a principal alavanca do desenvolvimento econÃ3mico dos povos. Na longa caminhada da humanidade desde o seu berço ancestral em Ãfrica, antes ainda da invenção da agricultura ocorrida há milénios e da qual derivariam as primeiras comunidades sedentárias, já a transferÃancia de bens, ainda que esporádica e incipiente, estava presente, como o sugere a presença de artefactos lÃticos em locais muito afastados daqueles em que necessariamente poderiam ter sido produzidos. Por essa altura, certamente já as comunidades humanas valorizavam a ordem social como condição da prÃ3pria sobrevivÃancia. De modo vago haviam-na prova¬velmente já enquadrado através de regras jurÃdicas de natureza consuetudinária. Neste contexto, a actividade de troca, transformada cm actividade comercial quando passou a configurar-se como modo de vida ou actividade principal de alguns, afirmava-se como domÃnio relevante da vida social. Seguramente não demoraria muito a firmar-se a convicção de que o comércio encerrava especificidades revestidas de um certo grau de autonomia no conjunto das actividades humanas, as quais, por se centrarem em domÃnios comportamentais ao alcance da ordem jurÃdica, logo deram lugar à consciÃancia de que tal actividade podia configurar um domÃnio especÃfico dessa ordem. Pode, pois, supor-se que a percepção do Direito Comercial, mesmo não sendo coeva do inÃcio da actividade mercantil, não deve ter demorado muito tempo mais a emergir. Não obstante, independentemente da sociedade que em concreto se tenha em vista, durante muito tempo a sua regulamentação foi deixada quase exclusivamente ao costume. Em termos genéricos o mesmo se passara com os restantes domÃnios jurÃdicos, já que o costume regra geral antecedeu a lei. Mas, no âmbito comercial esta tendÃancia preservou-se mais no tempo, entrando claramente em momentos da evolução das sociedades nos quais o domÃnio da lei era já preponderante. Vários factores para isso contribuÃram. A actividade comercial concretizava-se em comportamentos com forte especialização nem sempre perfeitamente compreendidos ou ao alcance dos profanos. Muitas vezes pressupunha o domÃnio de técnicas apenas conhecidas dos que delas tinham experiÃancia. Pressupunha algum grau de intuição pessoal difÃcil de substituir pela simples vontade. Envolvia frequentemente riscos a vários nÃveis que a aproximavam por vezes de algum aventureirismo. Exigia também o abandono de formalismos excessivos incompatÃveis com a urgÃancia das decisÃμes. Tudo isto apontava para um universo limitado de agentes - os comerciantes -que, pela sua restritividade, podiam funcionar como grupo dentro da sociedade mais ampla, podendo por isso beneficiar de formas de auto-organização e controle conducentes, quer ao apoio interno quando tal se justificava, quer a uma fiscalização expedita dos actos recÃprocos, embora não menos segura porque passÃvel de ser exercida, e mesmo punida, através de meios facilmente ao alcance dos que nela directamente participavam. Face a isto respondia a sociedade, não raro, com alguma admiração e inveja, valorizando as suas aparentes vantagens e esquecendo as menos visÃveis desvantagens, mas geralmente contentando-se em retirar os benefÃcios directos dela resul¬tantes. Ao universo sectorial de comportamentos especÃficos que a actividade exigia davam os comerciantes alguma ordem, auto-regulamentando-se de forma espontânea, mas sem menosprezar a adaptação de regras vantajosas eventualmente existentes na sociedade exterior, e procurando na prÃ3pria natureza humana conceitos através dos quais pudessem dar consistÃancia a esses comportamentos. Entre estes, a ideia universal de boa fé, conscientemente ou não, rapidamente se transformaria num dos seus importantes esteios. Até ao século XIX o Direito Comercial, mais do que qualquer outro domÃnio jurÃdico, viveu dentro destes parâmetros. Direito de um grupo por excelÃancia, não deve por isso estranhar-se que algumas antigas colectâneas de regras comerciais se configurem essencialmente como conjuntos de usos e costumes prÃ3prios da actividade, nelas ocupando posição de relevo a regulamentação do comércio marÃtimo e dos meios de transacção financeira, e que, quando lentamente o listado foi entrando dentro deste domÃnio jurÃdico, o tenha feito quase sempre na sua esteira. Tendencialmente internacionais, muitas dessas regras não conheciam, na realidade, senão as fronteiras que os prÃ3prios comerei antes traçavam. E assim que ainda na segunda metade do século XVIII, um governante iluminado como o MarquÃas de Pombal, sem o mÃnimo rebuço, remetia subsidiariamente para as leis mercantis e marÃtimas das naçÃμes esclarecidas, sem que esse recurso a direito estrangeiro lhe parecesse questionar a soberania nacional. Na sequÃancia do liberalismo a lei estatal atingiu o paroxismo absolutista e o âmbito comercial não poderia deixar de lhe sentir os eleitos. Emerge a codificação e neste contexto chegaria a vez de a lei se apropriar decisivamente do Direito Comercial. O CÃ3digo de 1888, o segundo elaborado em Portugal nesta área jurÃdica - ainda hoje traço de relacionamento entre o ordenamento moçambicano e o portuguÃas - é disso exemplo. Moçambique, como outras naçÃμes que se afirmam no mundo moderno, necessita de um quadro jus-comercialÃstico em sintonia com uma actual idade que, sendo globalizante, não pode prescindir das particularidades nacionais. Herdeira de um sistema jurÃdico construÃdo para uma realidade hoje muito diversa, orientou-se decisivamente para a sua reformulação através de intensa produção legislativa. Urna a uma, as principais vertentes da actividade comercial foram sendo detalhadamente reformuladas em sintonia com a interpretação polÃtica dos interesses da sociedade. Sem dÃovida haverá muito ainda a fazer. Mas, face ao breve tempo em que lhe foi possÃvel reformulá-lo e aos resultados conseguidos, trata-se de uma tarefa notável. Mas, como todo o trabalho de reequacionamento de uma realidade jurÃdica prévia, a reforma legislativa em curso ficou dispersa por mÃoltiplos diplomas elaborados ao longo de cerca de trinta anos. Tempo virá em que o trabalho será o de concentrar num ou em poucos textos, Os regimes agora dispersos, tarefa que exigirá não menor disponibilidade e energia. Enquanto esse momento não chega a presente colectânea cumpre a função intermédia, mas imprescindÃvel quando a produção jurÃdica atinge nÃveis elevados, de coligir o manancial legislativo disperso c de o apresentar de forma sistematizada. Trata-se de uma etapa comparável, mutatis mutandis, à preenchida pelas OrdenaçÃμes que antecederam os cÃ3digos, a cujo resultado quase somente os agentes do direito conseguem dar o seu real valor, esquecendo embora algumas vezes, inebriados pela facilidade de acesso ao conjunto da legislação, que a pesquisa subjacente nem sempre foi fácil e consumiu muito mais esforço do que aquele que o resultado, na sua clareza, aparenta. Foram estes os objectivos dos responsáveis pela colectânea, a Mestra SÃlvia dos Anjos Alves c o Doutor LuÃs Barbosa Rodrigues, que. sendo actualmente docentes daquela Faculdade honraram também com o seu esforço a Faculdade de Direito de Lisboa ã qual se encontram ligados. Pelo cuidado colocado na respectiva elaboração, pela recolha criteriosa e cientificamente apresentada a colectânea atinge plenamente os objectivos. Merece por isso as nossas saudaçÃμes. Cremos que com esta publicação, Moçambique, a comunidade dos juristas e os cidadãos em geral, moçambicanos ou não, ganharam um auxiliar a todos os tÃtulos valioso. Professor Doutor J. Duarte Nogueira Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
ISBN-10: 9789724021034 ISBN-13: 9789724021034 Páginas: 962 Autor: VARIOS